terça-feira, 21 de abril de 2015

Em um desses finais de tarde, perguntei se ela gostaria de uma gaveta em meu guarda-roupas. Imediatamente, seu rosto mesclou-se ao céu alaranjado, faiscado de vermelho-sangue; pensei no quadro do David Munch quando um silvo de contentamento escapou de seus lábios. Um par de nuvens rosadas emerge da minha ansiedade, seguro em seus ombros e faço com que seus pés girem até a paisagem:
- Olha que céu lindo!
Ela pergunta se teria espaço, já que não há mais espaço sequer para minhas roupas; atropeladamente digo que não que há sempre espaço que já ia doar mesmo metade de tudo aquilo, que não precisava mais que poderíamos sim dividir que ela teria com certeza o espaço de que necessitasse, é claro, é claro, não há problema algum. A noite se aproxima em ritmo de bofetada, me atiro na cama e pergunto se ela acredita que as relações sempre podem se transformar; ela diz que não, e que talvez devêssemos ir embora e eu coloco os sapatos, digo que já estávamos nos atrasando mesmo. Ela ri, e diz que não era isso que queria dizer, ela diz que falava sobre a única solução, às vezes, ser a partida, porque algumas coisas acabam.
Eu olho pro guarda-roupas, olho pras seis gavetas e toco todo o peso da nossa história; da minha e da dela, da ciência, das artes, lembro que o mal do século é a depressão e que depressão nada é senão o nome que encontramos pra algo que sempre esteve ali escondido e esperando a hora de aparecer quando já estivéssemos confortáveis o suficiente pra sofrermos confortavelmente com cigarros, Caetano e poltronas e bebidas de boa qualidade, caio de novo na cama como se levasse dessa vez um soco, e falo que não, que há sempre um jeito, que sempre podemos transformar revolucionar porque isso e porque aquilo outro, que basta mudarmos algumas coisas e seremos outras pessoas, que não há problema algum, é claro, é claro que não devemos desistir de nada, desistência e troca é coisa de capitalista. Ela ri, e eu me lembro das nuvens róseas e digo que ela deve estar certa, de que talvez devêssemos assumir que no final de alguns caminhos fatalmente há o final e só; nem há encruzilhada porque não há outra escolha que não aceitar que algumas vezes, simplesmente, devemos agradecer e dizer adeus.
- Como é bom ter você em minha vida, meu amor!
E já desdigo no mesmo instante, digo não não, não foi isso o que eu quis dizer, olha aí de novo a relação capitalista não eu não te tenho, eu estou com você ok?
- O quê?
- Olha, é minha loucura chegando, esquece, esquece, eu quis dizer que não quero que haja entre a gente o que há com essas outras relações difíceis que criamos por aí e que agora queremos nos desvencilhar disso tudo, com a gente é diferente não é? Esquece, esquece, eu estou enlouquecendo mesmo, esquece o que eu disse, eu não te tenho eu só estou com você, foi isso o que eu quis dizer e nada mais.
- Você pode me ter enquanto eu estiver com você.
Sim, talvez pudesse ser isso, talvez seja isso, quando aparecer de novo O Grito a gente olha pro céu e vê as nuvens rosas, é isso que é o nosso amor?
- Eu estou com vontade de chorar. Não, não sei porquê; não, não deve ser a incerteza sobre os próximos meses, sobre o ano que vem, seria estúpido demais. Eu quero chorar, é só isso.
Talvez seja por isso que eu nunca consegui parar de fumar. Em peso, é como uma pequena vingança, é como se devolvesse ao mundo um pouco de mim, como se cuspisse em sua cara todos esses milhões de seres que me atravessam e que diariamente me desfazem. Em leveza, é uma carícia, uma forma de devolver ao ar todo o vazio que consigo assoprar, e levito. Acendi então mais um cigarro, e com a fumaça presa à garganta disse eu também, eu também quero chorar e não sei porquê, assoprei tudo aquilo ao mundo que nunca pára, e sorri, e pra mim tudo aquilo era amar, era amar demais. 

1 comentários:

Lorene. disse...

Lindíssimo. Como são vocês duas.